11 março, 2011

Sentimentos Amordaçados


Amordaçamos os sentimentos que tínhamos, repelindo-os contra as paredes de um quarto sem janelas ou portas. Arrumamos as memórias nas estantes mais altas, onde nem em bicos de pés lhes poderíamos chegar. Fumamos os esqueletos cremados de antepassados, urgindo em nós uma ânsia de sucesso incontrolável. Sermos mais. Não que nós mesmos mas que dos outros, mostrando-lhes caras que muitas vezes não temos, frutos que nunca colhemos… Nós que nos achamos senhores do mundo, da razão ou da ciência, quando são eles que nos têm na palma da mão.

O sítio onde crescemos, que dita a nossa língua, que decide se daremos um beijinho, um abraço ou um aperto de mão ao próximo conhecido que encontrarmos na rua. O sítio para onde nos mudamos, os amigos que ficam para trás, os que vão ficar, num macabro sorriso que nos deita esse que pensávamos possuir. Que o mundo não é nosso mas nós dele, que por muito que diminuamos as distâncias elas continuam lá. 

As ideias que temos, os muitos “por que” e “talvez” que damos a nós mesmo, quando deitados no escuro esperamos que o sono venha. E pensamos que a acção é nossa, que tomamos determinada decisão porque quisemos, quando afinal foi ela, com a sua naturalidade e discrição. Foi ela, e não nós, que nos fez falar, nos fez saltar o abismo, que nos impediu de avançar. Que ela está em todo o lado, que tudo e todos têm as suas razões.

Esses objectos estranhos que nos poupam o esforço, que nos teleportam para o outro lado do mundo. Que quem nos controla são eles, que se nos faltam passamos a inúteis, obsoletos. Que acreditamos conversar com alguém quando na verdade interagimos com uma máquina, e morre nela toda a magia do timbre, da entoação, do ritmo. Morre nela a voz e morrem as amizades, das quais abdicamos, trocando-as lentamente por esses objectos que julgamos dominar. 

E como pode este pateta homem, esta amostra ignorante de Ser, achar que consegue controlar as emoções? Que se não o faz com as verdades da Terra, nunca o fará com as verdades do Homem. Que um dia abre-se um buraco na parede onde as guardamos, e cai a estante com as memórias, que, lá em cima arrumadas, esquecemos que possuíamos. Cai, mesmo em cima do nosso pé, amassando os ossos sem desdém, rasgando a pele nua com brutalidade. E aí estão de novo libertos, as memórias e os sentimentos, e finalmente vemo-nos como eternos Zé-Ninguém, e a eles como cavalos selvagens, indomáveis, prontos para se soltar a qualquer momento e nos dar um coice. 

Quando isso acontece, dói.

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