04 agosto, 2012

Sobre o percurso presente

Ultimamente tem-me dado a nostalgia das pessoas que partem. Ao percorrer essas ruas que já me parecem minhas, vou reparando nos pormenores a que não se dá importância quando se passa pelos mesmos sítios todos os dias. Os olhos verdes do pedinte à porta do supermercado, que tão amavelmente me saúda com um "bom dia"; o nevoeiro que cobre a ponte de manhã cedo, deixando-a meio desamparada, pendurada sobre uma espécie de nada; o gato escanzelado que se esfrega nas paredes ou se lambe ao sol a tentar livrar-se das pulgas.

"Porque é que não trouxe a minha máquina?" queixo-me mentalmente ao aperceber-me destas cenas. Mais do que memórias, é essa fealdade que procuro, essa sujidade depravada que a torna numa bela imagem. Que as memórias, essas, não me arrependem do meu acto de desprendimento final.

Não vou sentir saudades do barulho da rolha a saltar da garrafa, ou do cheiro a vinho que ao fim do dia permanece nas minhas mãos. Não vou sentir saudades de procurar no armário a garrafa certa, do som do vidro a penetrar a caixa de cartão. Assusta-me mais o facto de não mais ouvir o eco metalizado dos meus passos sobre o aço trabalhado de Eiffel, enquanto se impõe a calma dessa paisagem de casinhas encavalitadas umas nas outras, o poema eterno de Rui Veloso.

29 maio, 2012

The man who lost his soul


Subiu a rua. Chegou lá acima ofegante. Mas esse cansaço já não o afectava. Com esse cansaço podia ele bem. Era aquele tipo de sentimento que se cura na cama, durante a noite, depois de mais uma sessão de sexo furioso com aquela mulher que chamava sua, e que servia mais como anestesia do que fonte de prazer.

O outro não podia ele curar. Aquele cansaço que o fazia hesitar entre saltar ou não sempre que chegava ao décimo terceiro andar em que trabalhava, seis virgula cinco dias por semana, e consultava a sua agenda. 8h15: relatório mensal. 9h: reunião com a direcção. 10h30: pausa para o café. 10h40: defecar. Não havia actividade que ela esquecesse, e se esquecesse é porque não havia tempo para ela.

Sim, esse cansaço coparado com o outro não era nada, e quase se riu por estar a ofegar, por se “sentir cansado”. A agenda dizia “não há tempo para estar cansado”, o director da empresa dizia “não há tempo para estar cansado”, a sociedade dizia “não há tempo para estar cansado”, mas ali estavam as pernas dele a gritar cansaço, e esse, apesar de curável, ele não podia evitar.

E então riu-se alto. Deu uma gargalhada para o infinito e sentou-se no cimo da rua, a olhar a paisagem em que nunca tinha reparado, enquanto desfazia uma a uma as páginas da agenda e bradava “19h30: horas de descansar!”.

O seu nome era para surgir nas notícias, dias depois, entre um roubo a uma joalharia e as caras dos jogadores que mais golearam na última jornada. Mas o noticiário atrasou-se, e para cumprir os horários passou-se essa notícia à frente. Ninguém teve tempo para reparar na diferença.

15 dezembro, 2011

Germes

Tiras a caneta da boca. O fio de baba cai de entre os lábios e desce devagarinho pela pele, arrepiando os pelinhos invisíveis que se arrebitam no teu queixo. Faz uma linha quase perfeita, não fossem as duas gotas mais grossas a meio. Entremos. Encolhamo-nos milhões de vezes até sermos parte da multidão que habita essa bolha, esses dez milhões de seres que se amontoam num mundo de casas amarelas e estradas que as recortam. Aprendem na escola como ali chegaram, anos atrás, um povo habituado à seca contínua e ao sol do deserto. Aprendem como um terramoto rasgou a própria Terra em dois e deu início a uma nova era, como um arranhão marcado na pele, vermelho sobre o branco, enterrado a fundo. O deserto deu lugar à sombra, a um clima húmido e tropical que estimulou a população a reproduzir-se. Todos os estragos foram rapidamente apagados à medida que se levantavam prédios e fábricas, que se plantavam jardins e florestas e se desviavam leitos de rios. São todos relativamente felizes, seguindo as suas próprias vidas sem preocupações. Sabem que à volta da Terra existe uma mancha negra chamada universo, onde se acumulam planetas como o deles mas sem pessoas como eles. Aprendem-no na escola mas não se preocupam muito com isso. Interessa-lhes mais o que se passa lá dentro do que o que não se passa lá fora. Sabem que isso poderia mudar as suas vidas, a própria vida como a concebem, mas de repente têm mais com que se preocupar. Já não são tão felizes. São muitos num mundo construído por poucos. Há velhos a mais e jovens a menos para os sustentar. E os jovens a menos são a mais para os empregos que há, que são a mais para o dinheiro que não há, que simplesmente desapareceu, que caiu pelo buraco do bolso das calças de um desses poucos que construiu o mundo de muitos. Morrem lentamente, uns em sacrifício dos outros enquanto se recusam a corrigir uma sociedade obsoleta, afundada em imagens falsas de perfeição. Compram-na diariamente, acreditando que quanto mais a comprarem mais felizes serão, sem perceber que a felicidade é um sentimento que vem de fora, talvez desse universo indesvendável que têm vindo a esquecer. Afundam-se assim devagarinho, metafórica e literalmente, não fossem eles nada mais, nada menos do que os germes que habitam a saliva que caiu dos teus lábios quando tiraste da boca a caneta que roías furiosamente sem te aperceberes, enquanto tentavas entender as linhas de fórmulas matemáticas que o professor vai escrevendo no quadro branco da sala de aula.

27 novembro, 2011

Memórias

Memórias  -  pedaços de vivências seleccionados segundo critérios pessoais que variam de pessoa para pessoa. Armazenam-se no cérebro sob a forma de uma matéria viscosa, semi-transparente, que se agarra a outros pensamentos, deformando-os. Este processo, que dá pelo nome de "lembrar", provoca sintomas  como distracção, dificuldade de concentração e alterações emocionais como o riso, o medo, o choro compulsivo, a raiva, a saudade. Observaram-se em pessoas que padecem desta doença dois tipos de reacção: a necessidade de guardar a memória e a necessidade de a partilhar. Esta doença é altamente contagiosa e o simples contacto com outros provoca a propagação do vírus. Até hoje não são conhecidas curas.

01 novembro, 2011

Vida de rua


Levas o cigarro à boca. Inspiras. O fumo sai-te lentamente por entre os lábios, de encontro ao ar frio da noite. Não aquece. Não atenua a crueldade da rua. Continua tudo exactamente como estava. O cobertor sujo, a prostituta. Um carro abranda, parece que ela já teve a sua sorte. E a tua? Vês uma cadeira de bebé na parte de trás. Lembras-te do teu. O bebé que fizeste e nunca chegaste a ver. Lembras-te dela. Aquela a quem chamaste puta, apesar de a verdadeira estar agora à tua frente, inclinada sobre a janela do carro. Não é pior que tu. Ela troca o corpo e a dignidade por comida. Tu troca-los por bebida. Pela droga que te desce agora aos pulmões. Cada um tem o seu preço. Basta tocar na ferida e todos vacilam. Todos caem na armadilha que é a vida. Ratoeira. Lembras-te do ratinho que tinhas na tua infância. Segura-lo na mão e escondes-te atrás de um corpo. Uma saia verde escura. O portão de ferro volta a estar à tua frente. Não queres ir para a escola. E mais valia não teres ido. Foi lá que tudo começou. Que levaste o primeiro cigarro à boca. Tossiste, os outros gozaram contigo. Ainda ouves os risos deles na tua cabeça. Queres atirar o cigarro ao chão. Parti-lo em dois. Como ela fazia. Lembras-te dos seus lábios. Do vapor quente, adocicado que deles se soltavam. Afundas-te outra vez nesse odor, como fazes sempre que estás em baixo. No seu sorriso. E agora ela foi-se. Tal e qual a prostituta. Imaginas esfaquear esse homem que a levou. O prazer de sentir as suas entranhas na ponta da tua faca. Lembras-te da primeira vez que o fizeste. Do olhar assustado, as lágrimas a precipitar-se num agudo pedido de ajuda. Que pares. Todos eles querem o mesmo. Que pares. Não é isso que queres para ti mesmo? Mas continuas sentado no chão, no cobertor sujo. Sabes que o teu cheiro enoja os outros. Os perfeitos. Os que souberam parar sem nunca terem começado. Por nunca terem começado. Lembras-te dos olhares que partilhavas na prisão. Olhares severos de quem não confia em ninguém. Também tu deixaste de confiar no mundo, muito antes de ser altura de o fazeres. Entre a pureza angelical daqueles meninos de ouro, bem engomados nos seus uniformes escolares, já tu sabias que o mundo não era cor-de-rosa. Olhas as tuas mãos. Tens os dedos sujos pela vida. Gostavas que a prostituta não se tivesse ido embora. Imaginas-te a penetrá-la furiosamente, mas nem para isso serves. Até nisso os meninos de ouro ganham. Apagas o cigarro na borda do passeio e encolhes-te no cobertor. Talvez o amanhã não venha. Talvez tenhas a tua sorte.

21 setembro, 2011

Minuit a Paris

Paris é considerada a cidade mais romântica do mundo. Sempre discordei deste pensamento até visitar a cidade. Há tantos espaços no mundo, cheios de encantos inexplicáveis, que fariam saltar o coração de qualquer casal que por lá se passeasse. Roma, que nos leva para trás, de volta a um tempo em que se usava lençois brancos à volta da cintura, que a perfeição, essa via-se ao longe, esculpida na pedra. Praga, cidade de fábulas e contos de fada, onde tudo parece real e possível. Até mesmo a Londres pacata das casinhas com jardim, onde se imagina logo um casal a envelhecer de mão dada junto à lareira. 

Mas então vi Paris. A Paris das ruas estreitas, semi-esquecidas, trocadas pelas grandes avenidas que tomam os turistas, as ciganas surdas-mudas, os cantores de rua e os vendedores ambulantes. A Paris dos croissants a cada esquina, das banquinhas de livros e postais de outra época que se estendem à beira rio. A Paris medieval da Notre-Dame, das histórias enterradas. A Paris da cultura, da boémia, da alegria do carácter bem definido, dos bigodes compridos, das boinas na cabeça e baguetes debaixo do braço. 

Sim, Paris é a cidade mais romântica do mundo. Não porque albergue nela a receita secreta dos casais felizes, que esses, se tiverem de o ser, são-no, romanticamente, em qualquer canto do mundo. Paris é aquela mulher enigmática que se deixa gostar facilmente mas parece impossível de conquistar. Faz connosco um jogo de sedução constante, um olhar simultâneo de desafio e repulsa, um sorriso de dúbia confiança e palavras doces cheias de malícia. 

Paris é a cidade mais romântica do mundo, sim, mas porque é impossível por lá passarmos sem nos apaixonarmos cegamente por ela.  

Por tudo isto, obrigada Woody Allen, por me fazeres reviver Paris.

13 setembro, 2011

Hippie Chique

Recebi um email publicitário, daqueles que não sabemos muito bem de onde vieram, visto que nunca fornecemos o nosso email àquela empresa. Este em específico era de uma marca de roupa, e anunciava, em letras bem grandes, as novidades, "Acessórios de hippie chique".

É uma situação que me fez rir, rir muito, e bem alto. Hippie e chique são coisas que não combinam. O hippie é um ser que usa calças gastas, que encontrou no sótão ou comprou numa loja de segunda mão, porque era mais barato. Usa vestidos ou camisas largas, para poder andar à vontade, sentar-se no chão, apanhar os legumes que plantam na horta. Anda de pés descalços, para sentir a terra, ligar-se à natureza. Colares, pulseiras, cintos e acessórios, são normalmente coisas feitas à mão, por ele próprio, amigos e conhecidos, ou tão somente uma das feiras de artesanato que frequenta.

A partir do momento que uma coisa é chique, que não obedece à lógica do prático e confortável, e que tem como fundo servir as aparências e é fabricado de modo massivo e industrial, deixa de ser hippie. Hippie chique, não existe, tenho muita pena.