30 novembro, 2010

Velhice


A sala estava forrada a papel amarelo, com desenhos de flores negras, as paredes enfeitadas com quadros de mortos e um espelho árabe, recordação de uma viagem que alguém fizera por outro mundo. Ao canto, repousava uma secretária atafulhada de cartas abertas e por abrir, de respostas rabiscadas à pressa, por mãos que no final desistiram delas ou simplesmente as esqueceram. Havia uma grande estante cheia de discos antigos, acompanhada pelo gira-discos que lhes dava vida durante tardes a fio, quebrando a rotina e o dia-a-dia. E a poltrona, a poltrona verde onde se sentava a ouvi-los tocar, a poltrona que encontrara na rua, quase nova, e que trouxera para casa com o intuito de renovar, a poltrona que nunca chegara a ser restaurada, que mantinha as nódoas no assento e os arranhões de um gato que nunca tivera num dos braços.

Pelo menos era assim que se recordava as coisas. Afundado nessa mesma poltrona, fixava a janela há tanto tempo que talvez o ambiente à sua volta já tivesse mudado. Talvez alguém já tivesse arrumado as cartas, talvez alguém tivesse levado os discos. Talvez o papel de parede fosse agora castanho, resultado do desgaste do tempo, talvez tivessem comprado um televisor e violado o espaço que outra pertencera ao gira-discos.

 Lá fora, as vidas passam continuamente, deixando ficar um rasto de si mesmas entre os quatro cantos da tela. São telefonemas lassos de homens de fato a caminho do escritório, são pedaços de abraços de casais apaixonados sem idade para se apaixonar, são risos  despreocupados de melhores amigos que em poucos anos serão desconhecidos. São tantos, e mesmo assim parece que são os mesmos que por ali passam todos os dias, sempre com o mesmo aspecto, as mesmas conversas, os mesmos gestos.

E por momentos gostava de trocar as pantufas por sapatos e sair à rua, e voltar atrás, a esse tempo em que não havia preocupações, que tinha força para se levantar da poltrona, que tinha conversas desprovidas de sentido ou intuito. Em que não tinha perdido a sua crença mundo e na sociedade, em que ainda valia a pena respirar. Porque agora, estar lá fora ou não estar, era a mesma coisa – tal como ele, todos eles mantinham o dia-a-dia de sempre, todos eles restringiam o seu olhar para o mundo a uma janela pequenina, a espreitar a vida dos outros descaradamente, abandonando a sua. Não. Para isso preferia deixar-se ficar, esperar que a morte chegasse e lhe apontasse outra coisa.

Foi então que, com um baque, o espelho árabe se estilhaçou no chão, multiplicando a sala em mil pedacinhos tortos, espalhados pela carpete. Baixou o olhar pela primeira vez em tanto tempo, e um foi assaltado por um arrepio frio. Nos pedaços desalinhados ao longo da carpete, não encontrou rugas ou cabelos brancos. Apenas um olhar angustiado, enfeitado com borbulhas vermelhas, juvenis. Tinha a vida toda à sua frente.

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