06 maio, 2009

O homem da gabardina

O homem da gabardina desceu a rua e dirigiu-se à casa seguinte, com alguma impaciência. Eram três da tarde e ainda não tinha vendido um único gancho que fosse. A porta abriu-se até metade, e uma cabeça despenteada enfiou-se pela abertura. Saudou-a com um sorriso formal e a lenga-lenga do costume.

- Satisfaço sonhos e desejos de porta em porta. Em que posso ajudá-la hoje?

- Não estou interessada em nada. – respondeu a rapariga, preparando-se para regressar ao interior da habitação.

- Mas como pode saber isso, se ainda não viu o que tenho para oferecer? – a rapariga revirou os olhos, e lá concordou em ver os produtos. O homem desapertou, então, o cinto, e afastou os dois pedaços de tecido.

O interior da gabardina estava coberto de objectos de todas as cores e tamanhos, desde relógios, sabonetes e escovas, a colares de diamantes e pulseiras feitas de osso, canivetes, abre-latas, caricas e berlindes, cabides e latas de sumo, isqueiros, bolas de plasticina, batedeiras eléctricas e óculos de sol, pendurados em fitas de pano ou a espreitar de grandes bolsos amontoados por todo o lado.
A rapariga esfregou os olhos, mas não se deixou convencer pelo espectáculo.

- Não me parece que tenha aí nada que me atraia. – torceu o nariz.

- Ah, e então o que é que a atrai?

A rapariga hesitou antes de responder, fixando algo invisível no horizonte.

- Quero uma máquina de teleporte. Quero conseguir, num segundo, chegar ao outro lado do mundo! – riu-se para dentro. Para esta, o vendedor não teria resposta.

- Um objecto que lhe permita sair daqui e atravessar o mundo… - pensou - Visitar as pirâmides do Egipto e a Estátua da Liberdade, comer uma pizza italiana, salsichas alemãs ou sushi, navegar no rio Nilo, ou mergulhar no Pacífico… Um objecto que possibilite regressar à Grécia Antiga, ou experimentar a sociedade perfeita do século quarenta e dois… Uma máquina que cosa remendos e prepare refogados, faça massagens e apanhe a fruta. Quer poder experimentar sensações, desde a mais descontrolada raiva, ao remorso mais doloroso. Encontrar-se com piratas, bruxas e anões, falar com poetas mortos e pintores mal-sucedidos. Quer poder mudar a História, inventar uma cura para o cancro ou uma almofada hipoalergénica. Quer ser médica ou curandeira, possuir um tesouro imenso ou navegar na mais cruel pobreza. Quer ser polícia, ladrão, advogada ou juíza. Mudar o estado do tempo com um assobio, as estações do ano com um sopro. Tornar um quarto crescente em minguante, fazer tremer a Terra ou explodir um vulcão. Quer morrer e voltar a acordar. Saber de cor os princípios do cristianismo, budismo e judaísmo. Ser pagã ou agnóstica… Oh, sim, tenho aqui exactamente o que precisa!

A rapariga não aguentou mais, morrendo de curiosidade.

- É mesmo possível fazer tudo isso com uma só máquina?!

Então o homem curvou-se sobre si mesmo, remexendo as diversas divisões e compartimentos da sua gabardina, e tirou um objecto quadrado, com pouco mais de um palmo de comprimento.

- Toma. Este fica por minha conta. – e o homem da gabardina desceu a rua em direcção à casa seguinte, deixando a rapariga especada, com o livro nas mãos.

3 comentários:

Rui Bastos disse...

lindo. eu, um leitor compulsivo, só tenho a dizer que este conto é uma das melhores coisas que tenho lido. a mensagem que isto passa é precisamente aquela que eu gostava que toda a gente percebesse!

Nanashi disse...

Li este textinho e gostei bastante.

Vim deixar aqui aquele "olá" que te prometi.

Dark Kisses

Beky disse...

Obrigada Nanashi.

Vou esperar por mais olás teus ;)