Levas o cigarro à boca. Inspiras. O fumo sai-te lentamente por entre os lábios, de encontro ao ar frio da noite. Não aquece. Não atenua a crueldade da rua. Continua tudo exactamente como estava. O cobertor sujo, a prostituta. Um carro abranda, parece que ela já teve a sua sorte. E a tua? Vês uma cadeira de bebé na parte de trás. Lembras-te do teu. O bebé que fizeste e nunca chegaste a ver. Lembras-te dela. Aquela a quem chamaste puta, apesar de a verdadeira estar agora à tua frente, inclinada sobre a janela do carro. Não é pior que tu. Ela troca o corpo e a dignidade por comida. Tu troca-los por bebida. Pela droga que te desce agora aos pulmões. Cada um tem o seu preço. Basta tocar na ferida e todos vacilam. Todos caem na armadilha que é a vida. Ratoeira. Lembras-te do ratinho que tinhas na tua infância. Segura-lo na mão e escondes-te atrás de um corpo. Uma saia verde escura. O portão de ferro volta a estar à tua frente. Não queres ir para a escola. E mais valia não teres ido. Foi lá que tudo começou. Que levaste o primeiro cigarro à boca. Tossiste, os outros gozaram contigo. Ainda ouves os risos deles na tua cabeça. Queres atirar o cigarro ao chão. Parti-lo em dois. Como ela fazia. Lembras-te dos seus lábios. Do vapor quente, adocicado que deles se soltavam. Afundas-te outra vez nesse odor, como fazes sempre que estás em baixo. No seu sorriso. E agora ela foi-se. Tal e qual a prostituta. Imaginas esfaquear esse homem que a levou. O prazer de sentir as suas entranhas na ponta da tua faca. Lembras-te da primeira vez que o fizeste. Do olhar assustado, as lágrimas a precipitar-se num agudo pedido de ajuda. Que pares. Todos eles querem o mesmo. Que pares. Não é isso que queres para ti mesmo? Mas continuas sentado no chão, no cobertor sujo. Sabes que o teu cheiro enoja os outros. Os perfeitos. Os que souberam parar sem nunca terem começado. Por nunca terem começado. Lembras-te dos olhares que partilhavas na prisão. Olhares severos de quem não confia em ninguém. Também tu deixaste de confiar no mundo, muito antes de ser altura de o fazeres. Entre a pureza angelical daqueles meninos de ouro, bem engomados nos seus uniformes escolares, já tu sabias que o mundo não era cor-de-rosa. Olhas as tuas mãos. Tens os dedos sujos pela vida. Gostavas que a prostituta não se tivesse ido embora. Imaginas-te a penetrá-la furiosamente, mas nem para isso serves. Até nisso os meninos de ouro ganham. Apagas o cigarro na borda do passeio e encolhes-te no cobertor. Talvez o amanhã não venha. Talvez tenhas a tua sorte.
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