11 maio, 2011

Sombras

O vulto negro desceu pelas paredes da catedral, recortando-se no cinzento do fim de tarde. Não fez qualquer som ao descer, como se as suas mãos e pés não tocassem a pedra. Foi por acaso que me apercebi da sua presença, quando me virei de repente para apreciar os reflexos azuis e violeta vindos das janelas. Estaquei, e ele estacou ao mesmo tempo, sobressaltado por ter sido descoberto. Não lhe pude ver o rosto, escondido na escuridão, mas não tive qualquer dificuldade em reconhecê-lo, ligeiramente dobrado sobre si mesmo, o cabelo a saltar em todas as direcções. Era o mesmo que me tinha seguido no mercado há duas noites atrás, entre barracas vazias e silêncios, acentuados pelo contraste do borbulhar constante que se verifica durante o dia. O mesmo que se sentara no parque durante horas, a observar-me ao longe.

Aparecia sempre ao anoitecer, quando as ruas se despem de gente e cor e atingem uma espécie de cinzento esbatido, salpicado aqui e ali por holofotes de luz amarelada. Quando o som é castigado pela escassez de visão, três mil vezes ampliado, três mil vezes chicoteado nos ouvidos de quem passa. Mas nunca uma única vez ouvi um eco que fosse de um dos seus passos, um ofegar da sua respiração, um roçagar da sua roupa ao dobrar uma esquina. Com uma agilidade de gato, limitava-se a seguir-me e observar ao longe. Nunca tentou aproximar-se ou dirigir-me uma palavra. Ficava, simplesmente, e depois, tão facilmente como vinha, desaparecia.

Estamos virados um para o outro e nenhum de nós se mexe, mas sei que assim que o faça ele o fará também. Ele conhece-me por dentro, ao ínfimo pormenor, não como um amigo de longa data ou um irmão com quem partilhamos toda a vida, mas a um outro nível. Ele viajou mais fundo, aos recônditos da minha mente, e aprendeu os meus receios, as minhas reacções. Intrometeu-se nessa fracção de segundo em que o cérebro ordena ao corpo que se mova, e também ele, nessa fracção de segundo, age da mesma forma. Quando ando, segue-me, quando me detenho, pára. Se levantar um braço ele levanta o dele, se me deitar por terra ele deita-se também.  É um jogo psicológico que me assusta. Mesmo ao longe, mostra que tem poder sobre mim – se não podes esconder o teu próximo passo, como podes fugir?

Entre o momento em que os meus olhos e os dele, algures na escuridão, se cruzam, ambos sabemos que me tornei consciente da sua presença, que o reconheci. Mas mostrar-lhe que me tem sob poder seria declarar abertamente uma rendição. Com uma confiança que não tenho, decido entrar no jogo - o próximo a mexer não serei eu.

E assim ficamos, frente a frente, cada qual desafiando o outro, cada qual tentando mostrar-se mais forte. Não há qualquer exposição directa da nossa parte: não se trata de uma briga ou uma discussão filosófica. E no entanto, todas as nossas capacidades físicas e psicológicas estão em causa. Quem será o primeiro a acordar o corpo desse estado passivo, quebrar o selo de silêncio e disparar as palavras que atacarão o outro? 
É uma guerra fria sem início ou fim previsto. Como se o tempo tivesse parado naquele preciso instante, deixando-nos estáticos, à espera que os segundos voltem a fluir. Só que o tempo continua a passar, e vai levando com ele pedacinhos de nós, corroendo-nos, enfraquecendo-nos.  É uma questão de tempo até eu sucumbir ao cansaço, ao desespero, ao medo. As minhas pernas estão rígidas, das muitas horas passadas em pé. A minha cabeça pesa. Os olhos ardem. Mas do outro lado, ele continua de pé, nada mudou. Excepto talvez o céu, que começa a mudar de cor.

Em breve estaremos rodeados por turistas despreocupados que nos tomarão por atracções, e nos atirarão moedas vindas de todas as partes do mundo. Que nos vão olhar com indiscrição e rir, apontando ferozmente na nossa direcção. E aí, posto a descoberto a um público ávido de entretenimento, serei capaz de enfrentá-lo? Ou deixarei que, com um aplauso da audiência, me vença, resignando-me de joelhos à sua imposição?

O amanhecer afirma-se e reparo que o vulto negro se afastou. Não, não se mexeu, moveu-se, simplesmente. Mas atrás dele, a catedral, imperiosa, barra-lhe o caminho – seria impossível afastar-se nessa direcção. Não, ele apenas parece mais longe. Não sei exactamente como explicar, mas é isso que acontece. À medida que a manhã vai abrindo os braços para o mundo, ele parece estar cada vez mais longe. Até que por fim, quando as luzes nocturnas se apagam, ele se apaga com elas.

Olho com angústia o local onde se encontrava a miragem, e percebo finalmente. Acabo de perder uma cópia de mim mesmo, a minha sombra.

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