27 janeiro, 2010

Tempo

Passou os seus dias a construir muros de tijolo. Muros mais altos que o mundo, mais altos que o tempo, que a realidade, que a razão e os sentimentos. Construiu-os, dia após dia, com cada palavra, cada gesto, cada sorriso; cada música entoada no banho, baixinho, para ninguém ouvir; cada desejo guardado entre os lábios, na praia, junto ao mar, esperando que este o leve e o traga de volta, um dia, não na forma de desejo mas no corpo da realidade. E foi amontoando tijolos, tentando sempre superar-se a si mesma, tentando chegar onde nunca ninguém chegou, tentando construir uma muralha da China privada, particular, própria e exclusiva.

Um dia levantou-se uma tempestade, e o muro que a protegia levou com uma rajada de tempo. Não um tempo qualquer, mas aquele tempo que abala todo e qualquer mundo, que traz as recordações, e os sentimentos. Esparramou-se o tempo Passado na muralha, que se desfez toda, qual jogo de Mikado a que tiram o pauzinho de baixo.

Seria suficientemente negativo se caísse apenas, deixando-a de novo no ponto em que começara, sujeita às investidas do exterior a esse ovo em que se fechara. Acontece que os tijolos que sempre se empenhara em empilhar, eram, afinal, de vidro, que com a pressão da amargura se estilhaçaram e caíram, espetando-se nela. Na face, nas mãos, no peito e nas costas, toda ela era sangue, toda ela era vidros, toda ela era tudo esvaindo-se em nada. E o tempo entrou, deixou que chegassem até ela essas recordações e sentimentos que trazia, apertando-a ainda mais contra o chão, numa dor aguda que não a deixava respirar, gritar, ou pedir ajuda.

Assim ficou, estática e muda, sentindo-se corroer pela dor que duplicava a cada segundo. Tic tac. Mais uma vez o tempo a fazer das suas. O tempo Presente desta vez, que não deixa parar o mundo, que continuava, de facto, como se nada tivesse acontecido. "Levanta-te" diziam as vozes à sua volta, "Sê forte!". E ela ali quieta, deitada entre vidros e restos de pensamentos, sem conseguir responder.

Ao sétimo dia alguém duvidou se seria verdade, se estaria realmente acordada, se ouvia ou sentia alguma coisa. Com cuidado, e a medo, lá esticaram um dedinho e tentaram tocar uma parte da sua pele. Duro. Como pedra. Mas ao toque daquele dedo a sua boca abriu-se, inspirou uma golfada de ar, e deu um grito pesado, comprido e lento, como que deitando cá para fora tudo o que fora retido nas suas entranhas, nos seus poros. Toda a dor, toda a podridão, toda a indiferença que lhe tinham prestado, todo o tempo seu inimigo, todas as recordações e pensamentos por ele trazidos, toda a arrogância e julgamento, todos os sonhos, que ali morriam, lentamente.

A seguir, ficou vazia, e também ela faleceu.

2 comentários:

D.C.S. disse...

escreves mesmo bem pah :) muito bonito.

Beky disse...

Obrigada danny! :$ :D